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O dia reflecte o meu estado de espírito: tempestuoso, triste, escuro e chuvoso.
Está inconformado, como eu ainda me encontro.
E após ter passado anos, preocupada se estavas quentinho, bem agasalhado. Penso em ti hoje, num buraco de terra molhada. O meu lado racional sabe que já não sentes, que já não te afecta. Mas o meu lado emocional tinha vontade de levar uma manta e estende-la sobre a tua campa, para te trazer, de alguma forma, aconchego.
Deixaste-nos faz hoje uma semana. E a saudade é imensa. O vazio e a dor mantêm-se. Pouco mudou:continuo a chorar todos os dias, continuo apática ao mundo á minha volta, continuo a querer pegar no telefone e falar contigo. A tua camisola ainda está na minha cama, os teus objectos pessoais ainda pousados na cómoda.
Penso no teu doce olhar, ultimamente muito cansado. Na tua voz e sensatas palavras, no toque e cheiro da tua pele, em ti. E não acredito. Não sei como recomeçar, como entrar na rotina e nas conversas banais, como sorrir. Parece-me um caminho tão longo a percorrer.
Não tenho fé, nem sou crente em nenhum religião ou entidade, por isso só me resta agarrar á minha filha, ir buscar a ela as forças que preciso para sair da cama, para comer, para pelo menos...sobreviver.
Parece-me tão em vão viver, se nunca mais partilharei nada contigo.
Amo-te, paizinho.
Do funeral do meu pai recordo o que todos traziam calçado. Uns o calçado do dia a dia, outros, algo melhor, outros ainda o primeiro par que encontraram em casa.
A minha mãe calçou o par de sapatos que o meu pai mais odiava:
"Deita isso fora! - dizia-lhe - Parece que não tens outros sapatos ou dinheiro para os comprar!"
Detestava-os. E ela levou-os, na derradeira despedida. Fez-me sorrir.Pela sua personalidade irreverente. Porque me lembrei das picardias dos dois. Sempre discutiram muito (quando o meu pai ainda tinha energia para o fazer), mas sempre se mantiveram juntos. Quase 35 anos de casamento. Outros tantos roubados pela doença, os que aí virão.
As minhas botas iam tremulas, inseguras dos passos a dar. Comandadas por pernas bamboleantes e fragilizadas. Não chegaram ao destino, não tiveram forças, simplesmente não conseguiram. Ficaram perto, a albergar os meus pés encolhidos, frios e carentes, mas a cópia perfeita dos dele.
E ali ficaram largos minutos.Até que se sentiram confiantes para dar os derradeiros passos até ao seu encontro. Mas já escondido, já abrigado na sua morada final.
Calcaram a terra, que aos poucos colocavam sobre ele. Permitiram que os meus dedos se encaracolassem, que descomprimissem e que aos poucos em conjunto com o resto dos meus membros, rumasse junto a casa.
O que trouxe do funeral do meu pai? A certeza de que ainda com dificuldade todos os passos que der serão por ti e para ti.
Descansa em paz, paizinho.
A saudade será constante até que a morte nos volte a juntar.
Não invejo a felicidade dos outros. Nem as suas gargalhadas me incomodam. Mas não quero sair, ainda não estou pronta. Fico no meu buraquinho seguro, e cheiro mais uma vez a tua camisola. Encho os pulmões com o teu aroma. E tu ficas lá, concentrado no meu peito. Contenho a respiração, pois não te quero deixar sair. Mas sem grandes forças, solto o ar.
Olho em volta, á procura de algo teu: o relógio barato que pediste e só o pudeste usar naquele quarto de hospital, o livro que te ofereci no Natal, que só conseguiste ler até á 26ª página e a tua carteira, magrinha. Que contém apenas meia dúzia de cartões, dinheiro e uns recibos.
Baixo o olhar e sinto os olhos a ficarem húmidos.
Quero ligar-te. Mas o teu número já não existe. A única maneira de ouvir a tua voz é naquelas cassetes VHS, cheias de pó das férias e festas, dos anos 90. E essas vi-as ontem, já não trazem nada de novo.
Quero absorver-te, ler-te, olhar para o teu rosto, sem lembrar o sofrimento da partida. De uma partida sem regresso, sem retorno a casa.
Já li e reli várias vezes as tuas sms, vi as fotos tuas que o telemóvel guarda, as dos albuns e molduras da casa.
Nada me consola, nada me traz paz.
Fecho os olhos e relembro o toque da tua pele fina, morna e massilenta, já naquela cama de hospital.
Que saudades, meu pai.
Que dor que me rasga o peito e me leva a alma!
Sei que foste a saber que eras amado. Sei que te disse sempre que pude. Mas quem me dera fazê-lo mais uma vez. Olhar nos teus olhos e vê-los a olharem para mim.
Não consigo largar. Não consigo aceitar que te perdi. E não sei como vou arranjar forças para voltar a ser feliz outra vez.
Como nos mentalizamos que vamos ficar orfãos?
Como imaginamos os aniversários, as férias, o Natal sem um pai?
Como nos capacitamos que apartir de agora, deixamos de fazer memórias e passamos a viver delas.
Como aceitamos a sua ausência para todo o sempre? O vazia na mesa? O número de telemóvel que nunca mais será usado ou atendido?A festa que nunca mais teremos no rosto? Aquele nome carinhoso de infância, pelo qual apenas ele nos continua a chamar?
Passei a minha vida a pedir para que quando me levassem alguém, eu tivesse já a minha própria família, para me agarrar, para me obrigar a levantar de manhã. E agora que tenho uma filha, continuo sem estar preparada para deixar de o ser.
Como se despoja o armário das suas roupas? As gavetas dos seus objectos pessoais?
Como conseguirei eu mentalizar-me que a minha filha não terá memórias suas com o avô, apenas aquelas contadas?
Quem te viu, meu pai. E quem te vê! Magrinho, amedrontado, encolhido...
Se apenas eu pudesse minimizar essa dor, esse medo. Se eu pudesse adiar ter de te perder...
Como nos mentalizamos da morte de um pai.
Não o fazemos. Não há como. Em idade alguma.
Não há como preparar o nosso coração para a infindável dor que vai sentir e que sentirá, pela vida fora...
Pode só haver uma mãe, mas pais, como tu também.